A maioria das obras destinadas a contar a história da Estrada de Ferro Madeira Mamoré ou do Estado de Rondônia, seja destinado ao mundo universitário ou ao público do ensino médio, cometem um grave esquecimento, que é o de relatar a história, e por conseqüência, a relevância deste que foi um dos mais importantes portos de todo o extremo oeste brasileiro: Vila Murtinho.
Vila Murtinho, que hoje é chamado de Vila Nova do Abunã, município localizado a duzentos e cinqüenta quilômetros de Porto Velho sentido Guajará-Mirim, foi um ponto altamente estratégico no que diz respeito à extração, comércio e transporte da borracha. Sua localização explica essa importância, pois a vila se ergue exatamente onde ocorre o encontro de dois gigantescos rios que tiveram um papel decisivo para a atividade seringueira em toda a região amazônica.
Trata-se da junção do rio Mamoré, que passa por Guajará Mirim, com o rio Beni, rio caudaloso que desce dos Andes Bolivianos. Só por esse relato acredito ser possível deduzir a importância dessa pequena localidade onde foi construído um porto no início do século XX. Sabemos que a Bolívia possuía vastos seringais com uma qualidade produtiva acima do restante da média amazônica. Portanto, com o entroncamento desses rios, a localidade se tornava importante para se receber a grande produção boliviana.Toneladas de pelas de borracha eram estocadas em Vila Murtinho. O local acabou recebendo uma atenção especial dos grandes seringalistas da época, que ali montaram representações de suas empresas, como o caso da Suarez & Hermanos, que ficaram conhecidos como os Imperadores da Borracha, no extremo ocidente amazônico.
Tanto a localidade era estratégica, que um pouco acima de Vila Murtinho as margens do rio Bene, foi erguido pelos bolivianos um outro povoado com grande estrutura, a localidade de Cachoeira Esperança.
Vila Murtinho, tornou-se sinônimo de poder e, ainda hoje, apesar da ruína causada pela ação do tempo, podemos constatar sua importância a partir dos vestígios e restos, como, casarões, trilhos, a igreja e a estação ferroviária, que parecem clamar na tentativa de continuarem existindo. Hoje, Vila Murtinho, não é nem sombra do seu passado, vitimado pela cultura de abandono existente em nosso triste mundo, sempre desapegado ao seu rico passado.
Nos diálogos que pude manter com antigos moradores da região o sentimento nostálgico desse passado surgia de forma avassaladora, às histórias, jocosas, próximas do absurdo, como se tomados por um delírio febril de três cruzes de falciparum, envolvendo seringueiros e seringalistas me remetiam ao tempo das feras e mitos amazônicos. Era um bom negócio ouvir e imaginar a irrealidade dessa selva carregada de coisas só nossas, onde outros jamais acreditariam.
Esperamos um dia contar com governos que valorizem nosso passado e tomem iniciativas no sentido de reservá-lo. Nosso passado nos identifica, alimenta nossos espíritos, parece nos promover a um futuro além da vida, portanto necessário no processo de humanização de coisas e pessoas.
Um exemplo muito próximo de preservação e cuidado com o seu passado é a cidade boliviana vizinha à Vila Murtinho, Cachoeira Esperança, que foi restaurada e muito bem preservada, guardando toda sua beleza arquitetônica do tempo dos seringais.