À época do Segundo Ciclo da Borracha, lá pelos idos da década de 1940. Recém o Governo Federal tinha desbaratado os bandos de cangaceiros e celerados que grassavam o sertão nordestino. Dos muitos bandos que até então havia, os que não morreram, fugiram para as selvas amazônicas, e, quanto mais longe da civilização mais seguro era o esconderijo para onde esses bandidos fugidos se acoitavam. Pois bem, contam os antigos soldados da borracha que ainda vivem em Guajará-Mirim, cidade do então Território Federal de Rondônia, fronteiriço com a cidade de Guayaramirim, no departamento do Beni-Bolívia, que para lidar com os jagunços e bandoleiros acoitados na região, foi nomeado delegado o famoso Capitão Alípio.
O Capitão, como então era conhecido, era cidadão reservado, cumpridor de seus deveres e patriota ao extremo e que entre uma caçada de bandido e a prisão de um ladrão de galinha, de vez quando se deparava com causos curiosos como o fato que se deu a seguir:
Estava uma manhã o Capitão Alípio atarefado em sua mesa de trabalho assinando papéis variados, Boletins de Ocorrências, Ordens de Compra, Empenhos, etc., quando entrou um cidadão franzino, tez amarelada de quem tinha acabado de sair de uma "maleita" braba, dirigindo-se ao Capitão, exclamou em portunhol:
-¿Buenos días, mi capitán? - ¿Como levá?
O Capitão Alípio interrompendo momentaneamente seus afazeres respondeu educadamente ao cumprimento, em português:
-Bom Dia! O que o senhor deseja? Ao que lhe respondeu o suposto estrangeiro:
-Mi capitán, estoy a acá, para asier una denuncia. Roubararam mí chalupita(pequena canoa).
Como a resposta indicava transgressão da lei, o Capitão olhou mais atentamente para a fisionomia do denunciante e percebendo que o rosto do suposto boliviano não lhe era de todo estranho, perguntou-lhe:
-Meu caro jovem, por acaso você não é filho da Dona Esmeraldina, moradora lá do Triângulo e que foi minha lavadeira há alguns anos atrás? -Sí mi capitán, soy hijo della.
-Ella se enamoró con un boliviano, hace unos diez años e nosotros vivemos en la Banda, temprano. Complementou o "boliviano" para o Capitão.
-Então você é brasileiro nato e não boliviano. Estou certo? Perguntou o admirado Capitão.
-Soy brasileño, pero yo olvidé del portugués. No mi recuerdo nada del portugués. Respondeu o ainda boliviano.
-Me corrija se eu estiver errado. Se você mora há uns dez anos em Guayará Mirim, ou seja, na "La Banda", e você aparenta ter uns 25 a 30 anos, isto quer dizer que quando você foi morar em Guayaramirim você deveria ter uns 15 a 20 anos, estou certo? Inquiriu o Capitão.
-Listo, mi Capitán, yo tenia unos quince años. Respondeu o "boliviano".
-Então, meu caro jovem você falava a língua pátria, ou seja, o nosso bom e velho português brasileiro até se mudar para a Bolívia. Perguntou o Capitão. Rubro de indignação.
-Sí, sí, mi capitán. Respondeu o "boliviano".
Ouvindo tal disparate, o Capitão chamou seu ordenança e determinou:
-Mão-de-Ferro, leve o nosso brasileiro abolivianado lá para dentro, pegue aquele "ABC" de três furos que está pendurado lá cela 2 e recorde a língua pátria para este distinto esquecido.
O ordenança, sorrindo um sorriso de jacaré faminto pegou o "boliviano" pelos colarinhos, levou-o para a cela 2, apanhou um palmatória de uns 15 a 20 centímetros de circunferência com 3 furos ao meio, dispostos em triângulo, e segurando a mão do distinto esquecido pelas pontas dos dedos aplicou-lhe uma tremenda "palmatorada", dizendo-lhe:
-Esta primeira palmatorada chama-se letra "A". E pegando a outra mão do "boliviano" aplicou-lhe a letra "B". Retornando para a primeira mão aplicou-lhe novamente outra pauletada dizendo-lhe:
-Não esqueça, esta é a letra "C".
Roxo de dor, pulando numa perna só enquanto esfregava as mãos nas laterais das calças o "boliviano" implorou, agora em limpo e claro português:
-Pare, pelo amor de todos os santos em que o senhor é devoto, senhor "Mão-de-Ferro". Garanto-lhe que me recordo claramente da nossa amada língua pátria.
-Capitão! O distinto está dizendo que se recorda do português brasileiro, direitinho. E eu só cheguei na letra "C". Como é, paro ou continuo? Perguntou o ordenança.
- Pare não! Vá até a letra "S" de safado e mande o "esquecido" para casa.
Arigó
Publicado no Recanto das Letras em 27/02/2008 Código do texto: T878708
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